A última postagem que fiz neste blog foi referente
ao Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS, que é um excelente exemplo de museu
interativo. Agora, reabro as atividades postando sobre uma instituição bastante
diferente, que é o Museu Júlio de Castilhos (MJC), típico exemplo de museu
tradicional (ou ortodoxo). Entretanto, iremos perceber através dos apontamentos
que farei, que o museu não é tão estático como poderia parecer, pois passou por
grandes mudanças ao longo de sua história e já foi muito utilizado para
reforçar vieses ideológicos.
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Júlio de Castilhos |
O
Museu Júlio de Castilhos foi o primeiro criado no RS, em 1903, em homenagem ao
patrono morto no mesmo ano. O Museu, entre 1903 e 1954, passou por uma
redefinição tipológica, deixando de lado a perspectiva de se assemelhar aos
museus etnográficos europeus e brasileiros e passando a um viés regionalista de
reconstrução do passado local. Nedel (2005) discute o uso da memória na
consagração do positivismo no estado, através de um discurso histórico que legitimava
as elites políticas estaduais. Os princípios expressos na atuação do Museu ao
longo de seus primeiros 50 anos salientam o envolvimento das instâncias de
saber no domínio das práticas de representação identitária. Nesse sentido,
alguns grupos – os homens cultos – eram tidos como guardiões da memória
coletiva. É nesse contexto que surge a concepção de regionalismo, ligado à
preservação da memória da região. Entretanto, conforme Nedel (2005, p. 90):
Sem entrar no mérito das
diferenças de ordem geográfica, político-administrativa, etc., parece certo
reter que a categoria impõe um raciocínio analógico, associado à relação
parte-todo, e que sua trajetória semântica encontra-se historicamente vinculada
ao processo de unificação nacional – sendo esta última assegurada, entre outras
coisas, pela combinação de partes (“regiões” e grupos) que integram a unidade
política em questão.
O
regionalismo (a parte) parece surgir na ideia do distanciamento para com o
Estado nacional (o todo), tomando a parte como superiora ao todo. Daí surge
também a ideia de que a parte deve deixar de compor o todo, que atrasa o seu
desenvolvimento. É o que conhecemos como o movimento separatista, que
recorrentemente é defendido por alguns setores da sociedade. Desse modo, o
discurso regionalista é utilizado em conflitos internos, na busca pelo centro
do poder local; e em conflitos externos, pois tem um caráter de rebelião – em
casos mais extremos, pode dar origem a demonstrações de preconceito e desprezo
por pessoas de outra região – a xenofobia. O discurso regionalista, conforme Nedel
(2005), aposta na complementaridade, pois na tensão entre o polo e a periferia
reside o seu trunfo político.
A
região, nesse sentido, possui uma eficácia simbólica que deriva de práticas e imagens
mentais que são representadas através de determinados atores e instâncias de
poder. Tudo isso é fortalecido pela afetividade decorrente da divisão do
espaço, por meio da interiorização de alguns atributos que sintetizam o vínculo
dos habitantes com o território.
A
história do MJC começa ligada ao espólio deixado por uma das Exposições
Universais, iniciadas em 1851. Julio de Castilhos, presidente do estado, teve a
ideia de criar um museu com a reunião de 360 exemplares de minérios do RS,
exibidos na Exposição Agropecuária de 1901. Ele foi criado para ser o “Museu do
Estado” e integrado ao movimento de criação dos museus científicos
internacionais. Possui um caráter “mutante” devido principalmente a dois marcos
de sua trajetória: a fundação, em 1903, com um viés enciclopédico, dedicado à
“História Natural”; e o momento de redefinição tipológica, em 1954, quando
tornou-se um museu histórico, dando prioridade ao folclore e ao estudo das
tradições “pátrias” e rio-grandenses.
Em
1905, o Museu foi transferido para o sobrado em que Julio de Castilhos viveu
com a família. Dois anos depois, teve seu regulamento aprovado e recebeu o nome
do patriarca. O museu atuava para além da heroificação dos vultos republicanos,
sendo constituído por quatro seções: zoologia e botânica; mineralogia, geologia
e paleontologia; antropologia e etnografia; e ciências, artes e documentos
históricos. O museu, durante algum tempo, não contemplava a função
museográfica, permanecendo a maior parte do tempo fechado ao público, recebendo
pesquisadores estrangeiros e fornecendo pareceres ténicos. Desde o período de
sua criação até a década de 1920, o MJC era predominantemente caracterizado
como um museu de história natural. Os povos indígenas também não eram
devidamente representados no museu – excetuando-se questões relacionadas à sua
biologia e linguística.
Lentamente,
o museu foi deixando de lado sua perspectiva naturalista, cedendo lugar a um
viés histórico. Foi em 1925 que o Museu deu uma guinada nesse sentido,
especialmente devido à incorporação da seção histórica do Arquivo Público e a
parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS). Houve,
então, uma integração entre essas três instituições, procurando adequar as
leituras do passado regional às relações políticas do estado.
Em
1925, após mudanças administrativas, o museu passou a possuir duas seções: História
Nacional (liderada pelo arquivo) e História Natural (com a classificação e
análise das coleções paleontológica, etnográfica e botânica). Em 1938, é
vinculado à Secretaria de Educação e Cultura, tendo finalmente seu regulamento
adequado às funções que passara a desempenhar em 1925. Esse novo regimento fixa
a função museográfica como atribuição do museu, que deveria catalogar,
colecionar e expor documentos referentes à História e Geografia, relíquias
históricas, artísticas e arqueológicas do Brasil, especialmente do RS. Durante
o Estado Novo, é nomeado para a direção da instituição o médico Emílio Kemp,
que voltou a política de atuação do museu para o público, ao contrário do que
vinha ocorrendo, quando o foco do trabalho era a pesquisa, transcrição e
catalogação de documentos.
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Museu Júlio de Castilhos |
Na
década de 1950, assume Dante de Laytano, voltando o museu a ser palco de
intensos debates intelectuais e participando da formação de outras instituições
do gênero. Também passou a treinar profissionais que não contavam com formação
específica, integrados a pesquisadores que compunham uma campanha nacional a
favor da elaboração de uma identidade científica para os estudos folclóricos,
cuja representação no estado foi abrigada no museu. Conforme Nedel (2006), em
1953 o museu comemorou seu cinquentenário com um acervo bem mais numeroso do
que as dez mil peças abrigadas pela instituição atualmente. Para a autora, era
até mesmo difícil identificar que tipo de museu era aquele, pois “Com parcas adaptações
funcionais, o ambiente antes doméstico do sobrado em que vivera o patriarca do
partido republicano rio-grandense exibia tudo o que guardava, e guardava o
quanto recebia.” (NEDEL, 2006, p. 12). A fisionomia atual do museu é bastante
distinta, uma vez que o prédio anexo foi adquirido em 1980 e reformado em 1996
(NEDEL, 2006), com reserva técnica climatizada, sala de restauração, auditório
e planejado sistema de iluminação.
O
MJC, como percebemos, passou por diversas mudanças ao longo do tempo,
fortalecendo seu caráter “mutante”. Entretanto, percebemos que, independente da
caracterização do museu (ora focado mais em um tipo de acervo, depois em
outro), ele sempre funciona como um espaço de conflito, pois é utilizado no embate
político e ideológico, reforçando as tensões entre o estado e a nação. Se o
patrimônio é um campo de disputa, não poderia o museu, responsável por esses
bens, não o ser.
REFERÊNCIAS
NEDEL, Letícia Borges.
Breviário de um Museu Mutante. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, v. 11, n. 23, p. 87-112, jan./jun. 2005.
NEDEL, Letícia Borges. Da
Coleção Impossível ao Espólio Indesejado: memórias ocultas do Museu Julio de
Castilhos. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n. 38, p. 11-31, jul./dez. 2006.
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