terça-feira, 24 de setembro de 2013

O IMAGINÁRIO E A CONSTRUÇÃO DO “KIT IDENTIDADE” GAÚCHO

O patrimônio cultural é fundamental em nosso processo de construção identitária, pois são os signos e símbolos representantes de nossa cultura que ajudam a fortalecer nosso sentimento de pertencimento a um determinado grupo social. Esse processo se caracteriza através de nossas relações sociais, bem como de nossa interação com o ambiente em que vivemos. No entanto, há um conjunto de signos e símbolos rígidos que consideramos como patrimônio cultural, pois são difundidos pelo Estado, influenciando nessa construção identitária.

Precisamos de diferenças que nos singularizem
Ao pensarmos no conceito de nação, devemos considerar que “[...] mesmo existindo suportes concretos e contínuos do que se concebe como nação (o território, a população e seus costumes etc.), em boa parte o que se considera como tal é uma construção imaginária.” (GARCÍA CANCLINI, 1994, p. 98) Nessa concepção, devemos ter em mente, ao pensarmos sobre as características da nossa cultura, que construímos nossa identidade cultural no dia a dia. Assim, cabe a colocação de Possamai (2013), ao nos lembrar o fato de que o patrimônio não é um conceito dado, pois se concretiza através da construção social feita por determinados sujeitos em determinadas situações, sendo também apropriado por outros sujeitos de maneiras diferentes das originais. Para a autora, a construção identitária de cada grupo social é calcada no apontamento de diferenças, ou seja, um grupo se caracteriza pelo diferencial que tem em comparação com outros grupos, de outros locais.


Fazemos parte de culturas híbridas
García Canclini (1994) discute as implicações que fatores como o desenvolvimento urbano, a mercantilização, o turismo e as indústrias culturais geram sobre a noção de patrimônio histórico, uma vez que temos cada vez mais contato com diferentes pessoas, de diferentes lugares e culturas, gerando um hibridismo cultural, pois nossa cultura não é apenas o resultado de nosso processo histórico, ao passo em que se transforma a cada contato que temos com outras culturas.


Néstor García Canclini
Porém, o que percebemos é que temos a tendência a, ao pensarmos em patrimônio cultural, lembrarmos apenas daquilo que configura nossa cultura mais tradicional, ou seja, os costumes, roupas e modos de vida que fazem parte do nosso desenvolvimento histórico, geralmente remetendo ao que é antigo, considerado tradicional. Desconsideramos, nesse processo, o fato de que interagimos a todo o momento com um ambiente transformado, que guarda os resquícios da história, mas também se recria através do contato com diferentes culturas. Conforme García Canclini (1997, p. 160), “Esse conjunto de bens e praticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discuti-lo.” É como se a maioria de nós compreendêssemos o patrimônio cultural apenas como algo “herdado” do passado, de nossos antecessores, pois insistimos em posicioná-lo alheio à modernidade.

Talvez o principal motivo para essa percepção que fazemos de nossa cultura seja a atuação do Estado, que busca, através da disseminação de ideias e imaginários, reforçar nosso amor e fidelidade à pátria. Com esse intuito, muitas vezes o Estado defende e vangloria os movimentos tradicionalistas. Conforme García Canclini (1997), para o tradicionalismo, pior do que não compreender o patrimônio cultural é desertar dele, considerá-lo como não representante de nossa cultura, questionando a veracidade das representações por ele difundidas.


Zita Possamai


Possamai (2013) utiliza o termo “kit identidade” para se referir à construção da identidade nacional feita pelo Estado, que conta com características como a bandeira, o hino, a língua, o calendário cívico de datas comemorativas, entre outros. No contexto da cultura gaúcha, o “kit identidade” é configurado por objetos e costumes peculiares dos gaúchos – ou que, pelo menos, a maioria entende que sejam. Conforme Farinatti (2013):



Não há dúvida que há vários modos de sentir-se gaúcho. Mas é fato que a maioria deles passa pela identificação com o gaúcho como figura mítica, primeva, fundamental. Ele teria sido o “tipo social” por excelência da região da Campanha, mas também existente em outras áreas. Os gaúchos teriam sido homens destros nas lides campeiras, que viveriam entre o trabalho como peões nas estâncias e a luta nas inúmeras guerras de antigamente [...]

Nesse contexto, o autor ainda afirma que essa representação que se faz da figura do gaúcho serve para estabelecer uma diferença do restante do Brasil. Essa ideia fortalece a concepção de Possamai (2013) anteriormente apontada, na qual os grupos sociais constroem seus patrimônios culturais levando em conta o que os diferencia dos demais povos. Outro aspecto apontado pelo autor e que sintoniza com as ponderações de Canclini (1994) é que “Um lado bastante interessante do regionalismo é a busca de levar adiante aspectos de uma cultura local e não permitir que ela seja completamente submergida na padronização proposta pela globalização econômica e cultural.” (FARINATTI, 2013)

Todo gaúcho anda a cavalo?
As colocações acima expostas demonstram o papel do Estado na construção de ideias e imaginários acerca do que entendemos como sendo nosso patrimônio cultural. Como podemos perceber, ao pensarmos em nosso patrimônio cultural, geralmente desconsideramos as interações com outras culturas e lembrarmos apenas das nossas características mais tradicionais. Podemos arriscar o palpite de que um dos principais motivos para esse fenômeno é a busca pelo que nos diferencia, pelo que nos torna únicos e originais.

Em um mundo globalizado, é comum – e esperado – que tenhamos a necessidade de, em meio a disseminação de tantos modelos banais de cultura – geralmente advindas dos norte-americanos -, identificarmos aquilo que nos singulariza, as peculiaridades que, ao longo de nossa história, nos diferenciaram dos demais povos. Nessa concepção, cabe discutirmos o que realmente faz parte da nossa cultura, de modo a não aceitarmos conceitos prontos sobre quais bens culturais nos representam. Cabe ressaltarmos que o patrimônio cultural deveria inspirar reflexão, porém muitas vezes gera acomodação e consenso coletivo.

REFERÊNCIAS

FARINATTI, Luís Augusto. Os Gaúchos e os Outros. Diário Liberdade. set. 2011. Disponível em: < http://www.diarioliberdade.org/brasil/batalha-de-ideias/19743-luis-augusto-farinatti-os-gauchos-e-os-outros.html >. Acesso em: 22 set. 2013.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. O Porvir do Passado. In: ______. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997. P. 159-204.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. O Patrimônio Cultural e a Construção Imaginária do Nacional. Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, p. 95-115, 1994.

POSSAMAI, Zita Rosane. Patrimônio e Identidade: qual o lugar da História? In: GASPAROTTO, Alessandra; FRAGA, Hilda Jaqueline de; BERGAMASCHI, Maria Aparecida. (Org.). Ensino de História no Cone Sul: patrimônio cultural, territórios e fronteiras. Porto Alegre: Evangraf/UNIPAMPA, 2013. P. 87-98.

domingo, 22 de setembro de 2013

O HIBRIDISMO ARQUITETÔNICO DE FLORIANÓPOLIS A PARTIR DE 1930

As cidades e suas características arquitetônicas são de interesse dos estudos sobre patrimônio, uma vez que fazem parte dos bens culturais da sociedade. Com o passar do tempo, devido às dinâmicas sociais, elas passam por inúmeras transformações, se reinventando a todo o momento. Em seu artigo Patrimônio, arquitetura e estética urbana em Florianópolis a partir de 1930, Sabrina Fernandes Melo discute algumas manifestações arquitetônicas presentes em Florianópolis a partir de 1930.

A autora alega que na década de 1930 a cidade de Florianópolis passou por diversas transformações, que foram percebidas em sua arquitetura, até então caracterizada apenas pelo estilo clássico e que passou a incorporar características da modernidade. Percebemos, nesse período de transição, que o patrimônio arquitetônico de Florianópolis da época representava o momento pelo qual a cidade estava passando, caracterizado pela mescla do clássico com o moderno, o que resultou em um hibridismo arquitetônico.

O patrimônio cultural edificado fortalece certos traços da memória coletiva, tendo impacto na formação sócio-territorial dos indivíduos. Melo enaltece o fato de que essa implementação da estética modernista era utilizada no discurso político da época. Podemos inferir que um dos motivos pelo qual a modernidade foi utilizada nesse discurso político seja pelo fato de a modernidade estar associada à ideia de progresso.


A belíssima Ponte Hercílio Luz liga o continente à ilha de Florianópolis

O texto nos mostra que, apesar da importância dessa estética arquitetônica de Florianópolis, os prédios dessa época não são devidamente contemplados nas políticas patrimoniais da cidade, acarretando na presença de um patrimônio “invisibilizado”. A autora ressalta que a arquitetura pode transparecer a permanência ou ruptura com a tradição. Percebemos, nesse sentido, o papel da arquitetura dos espaços públicos na sociabilidade, enquanto produtora de discursos, sendo utilizada para elucidar um ideal que se deseja consagrar no imaginário sobre a cidade.

REFERÊNCIA

MELO, Sabrina Fernandes. Patrimônio, Arquitetura e Estética Urbana em Florianópolis a partir de 1930. Mouseion, n. 12, maio/ago. 2012, p. 105-117.

domingo, 1 de setembro de 2013

(RE)PENSANDO O MODERNO E O ANTIGO



Em nosso dia a dia, é comum utilizarmos a palavra “moderno” ao nos referirmos às novas coisas e fenômenos que surgem ao nosso entorno. Falamos, por exemplo, em objetos com design moderno, roupas modernas, casas e automóveis modernos e até mesmo em doenças modernas, como estresse e depressão, decorrentes do estilo de vida característico do “mundo moderno”. Também é comum utilizarmos a expressão “antigo” ao nos referirmos aos modos de vida, roupas, bem como os demais objetos e fenômenos de épocas passadas.
           
Segundo a sua definição, antigo é o “Que existiu outrora; de tempo remoto; antiquado; desusado; que sucedeu no passado; que existe a longo tempo; muito velho [...]” (ANTIGO, 1993). Por outro lado, entende-se como moderno o que é “Relativo aos nossos dias, aos tempos mais próximos de nós; atual [...]” (MODERNO, 1993). Nessa concepção, devemos pensar que a diferença entre aquilo que é moderno e aquilo que é antigo é a sua época de ocorrência.


Marshall Berman
 Na concepção de Berman (1988, p. 15), “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotranformação e transformação das coisas ao redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” Nesse viés, podemos interpretar que não existe uma época do moderno, pois ao longo da história, sempre nos deparamos com momentos de aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor. Obviamente, esse processo de mudança também geralmente significou uma quebra do modelo vigente, ou seja: algo novo surge e o seu antecessor se torna obsoleto. Enfim, estamos (e sempre estivemos) em constante transformação.


Zygmunt Bauman
Porém, o que percebemos é uma aceleração do tempo, no sentido de que mais fatos ocorrem e criamos mais coisas em um período de tempo cada vez menor, sendo que isso obviamente torna mais curto o tempo para que algo se torne obsoleto, sendo que essa é uma das características do mundo moderno. Bauman (2003) chama a isso de modernidade líquida, ao comparar o estágio em que vivemos com as propriedades dos líquidos: são fluídos, inconstantes, se transformam com frequência, sempre se moldando facilmente às mais diversas condições a que são expostos. Os líquidos não suportam a passagem do tempo.


Todas essas mudanças em um curto período de tempo nos dão a impressão – muitas vezes satisfatória, outras nem tanto - de que somos os únicos e que a nossa época nos diferencia. Berman (1986, p. 15), ao discutir a modernidade, afirma que “As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhão estão aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a passar por isso [...]”. Essa sensação talvez nos torne um pouco egocêntricos – um pouco perdidos no tempo e no espaço, mas egocêntricos.

Percebemos esse egocentrismo ao empregarmos as palavras “moderno” e “antigo”, pois às vezes atribuímos um sentido pejorativo ao que é antigo e valorizamos o que é moderno. Desse modo, “moderno” é muitas vezes símbolo de virtude e “antigo” é tido como sinônimo da presença de defeito ou inadequação. Por exemplo: a primeira empresa utiliza técnicas modernas de irrigação; a segunda empresa utiliza técnicas antigas de irrigação. No sentido real dessas expressões, o que estamos dizendo é que a primeira empresa utiliza uma técnica atual, enquanto a segunda emprega uma técnica de uma época passada. No entanto, muitos de nós, ao lermos essas frases, temos a tendência de subentender que a técnica moderna é melhor do que a técnica antiga.


Incorremos a esse equívoco conceitual devido ao fato de demonstrarmos fascinação pelo que é moderno, pois acreditamos que aquilo que é do nosso tempo é sempre melhor, consideramos a nossa época uma referência, como se realmente o mundo apenas melhorasse com o tempo! Devemos pensar que o conceito de moderno se refere a algo novo ou inusitado com o qual nos deparamos, e que está relacionado ao tempo em que vivemos. O que é moderno só é moderno se analisado sob a perspectiva de uma determinada época. Portanto, o que é antigo hoje um dia já foi moderno, bem como o que é moderno hoje, um dia será antigo. Porém, para entendermos essa relação, devemos compreender que nós não somos o padrão de referência em modernidade. Apenas somos, por enquanto, os mais modernos, pois o que se entende como sendo moderno é algo mutável, que varia de acordo com o tempo.

REFERÊNCIAS


ANTIGO. In: Dicionário Brasileiro Globo. 30. ed. São Paulo: Globo, 1993.

BAUMAN, Zygmunt. Ser Leve e Líquido. In: Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

BERMAN, Marshall. Modernidade Ontem, Hoje e Amanhã. In: Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a Aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

MODERNO. In: Dicionário Brasileiro Globo. 30. ed. São Paulo: Globo, 1993.

ANÁLISE DO FILME "NÓS QUE AQUI ESTAMOS POR VÓS ESPERAMOS"

Para dar partida às postagens no blog, gostaria de compartilhar uma análise que elaborei do documentário Nós que aqui estamos por vós esperamos, solicitada na disciplina de Museologia no Mundo Contemporâneo, do curso de Museologia da FABICO/UFRGS. Trata-se de um documentário tocante, que nos faz refletir sobre história, ciência, religião, relações sociais e suas implicações no passado, no presente e no futuro da humanidade!

O filme “Nós que aqui estamos por vós esperamos” tem como cenário um cemitério, local que normalmente é visto como sinônimo de tristeza e ausência de vida. Geralmente entendemos a morte como algo distante, pois mesmo sabendo que é inevitável, preferimos não pensar no assunto. Sábio é o dito popular “Para morrer basta estar vivo”, que nos alerta e faz pensar acerca da fragilidade da vida. De um certo modo, morte e vida coexistem, ao passo em que a todo o momento temos de lidar com a morte, sendo que, assim como todas as experiências na vida, dela também podemos extrair aprendizados.
Ao pensarmos no cemitério, diretamente o relacionamos com a ideia de morte, mas esquecemos que cada lápide guarda o corpo de uma pessoa, sendo que essa teve uma história. O filme retrata memórias de pessoas mortas, sempre remetendo às suas experiências enquanto vivas, em que nos deparamos com vários momentos históricos do século XX que influenciaram na vida de cada um de nós. Podemos destacar a revolução técnico-científica, uma das responsáveis por impulsionar a agitação do mundo moderno, modificando as relações que estabelecemos uns com os outros e com a natureza.

Percebemos, ao apreciar o filme, que ao longo de nossa existência sempre buscamos o poder, o que acaba sendo o motivo de nossas mazelas. Queremos ter o poder uns sobre os outros, o que acarreta em guerras; em vez de entendermos que fazemos parte da natureza, tentamos dominá-la e explorá-la, o que resulta na extinção de espécies e no fim de recursos naturais. No mundo contemporâneo, devido à busca pelo sucesso profissional e pelo dinheiro, nos tornamos cada vez mais individualistas, fortalecendo essa vontade de ter o poder sobre tudo.

Outro aspecto destacável apontado pelo filme é a religiosidade, pois além de se passar em um cemitério, local que por natureza remete ao assunto, há várias referências ao papel da religião na história. Em diversas circunstâncias pensamos a respeito da presença e da ausência de Deus, sendo que a fé é utilizada por muitos de nós como fonte de esperança, pois muitas vezes a utilizamos como um refúgio, visando fugir do mundo que nós mesmos ajudamos a criar e manter. Atrelado à fé, o filme também nos convida a refletir sobre os rumos da ciência. Percebemos que a relação entre homem e ciência é abalada, no momento em que, inicialmente pensada com o propósito de melhorar as condições da vida humana, a ciência é utilizada para a destruição do homem e da natureza, como ocorrido no caso das bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial.

Creio que uma análise - não apenas racional, mas também afetiva - dos acontecimentos e das memórias narradas no filme torna-se um convite para repensar nossa própria existência. Afinal, qual o propósito de nossas vidas? Respeitamos a natureza em nosso dia a dia? Fazemos o que nos faz feliz? Qual nosso conceito de sucesso? Estamos cometendo os mesmos erros já cometidos por outros no passado? O que deixaremos para as próximas gerações? Infelizmente, essas questões são muito pessoais para serem respondidas nesse momento, mas cabe lembrar que, se alguma das respostas para as questões acima não nos satisfazer, há a possibilidade de mudarmos. Pensar na morte e no passado talvez seja uma oportunidade de mudarmos a vida no presente.

Para quem quiser, segue o filme na íntegra!


REFERÊNCIA

NÓS que aqui estamos por vós esperamos. Diretor: Marcello Masagao. [S.l.]: Riofilme, 1999. online (73 min), son., color. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=-PXo5oGztiw >. Acesso em: 01 set. 2013.