quarta-feira, 1 de julho de 2015

OS MUSEUS BRASILEIROS NO SÉCULO XIX

As instituições museológicas passaram por mutações ao longo do tempo, pois durante certo período serviram para saciar a curiosidade do visitante, apresentando-lhe algo peculiar ou ilustrativo. Após algum tempo, entretanto, os museus passaram a atuar a favor da ciência (JULIÃO, 2006), acarretanto no surgimento de instituições voltadas à pesquisa de ciências naturais. O século XIX, para Bastos (2002), foi a idade de ouro dos museus, quando se tornaram templos da cultura da humanidade e afirmação da nação, orgulhosa de ter seu local de culto da história como símbolo da paisagem urbana.

Como consequência da Revolução Francesa, o século XVIII foi marcado por uma acepção moderna de museu, que se consolidou no século XIX, através da criação de instituições com espírito nacional, imbuídos de uma ambição pedagógica, formando o cidadão através do conhecimento do passado, participando da construção das nacionalidades (JULIÃO, 2006). Os museus se caracterizavam como fenômenos tipicamente urbanos, refletindo tomadas de consciência dos valores da razão, da civilização e do Império, além do novo espírito científico (LOPES, 2005).

Conforme Julião (2006), ocorreram várias viagens para o Brasil e pesquisas de naturalistas estrangeiros, resultando em relatos com descrições do meio físico, da flora, da fauna e dos nativos do local, bem como grandes remessas de acervo brasileiro para instituições de caráter museológico e científico na Europa. O interesse dos portugueses em explorar a história natural de suas colônias, conforme Lopes (2005), veio do declínio da mineração do ouro brasileiro, da revalorização da política agrícola, da necessidade de reação à crise econômica do consulado pombalino, da demanda de matérias-primas cobradas pela Revolução Industrial e do enfrentamento da concorrência com os produtos antilhanos. O Brasil também fez parte desse processo, marcando presença no que os autores chamam de “Era dos Museus”:

[...] os museus foram os locais profícuos para a introdução e desenvolvimento de um saber especializado, que propunha estabelecer a posição do homem brasileiro na escala evolutiva da humanidade, gerindo o debate acerca da possibilidade do Brasil vir a ser um país “civilizado”. (LANGER; RANKEL, 2015).


Museu Nacional
Em 1818, compondo as iniciativas culturais de D. João VI, é criado o Museu Real (atualmente denominado Museu Nacional), composto de pequena coleção de história natural doada pelo monarca. A respeito desse Museu, cabe destacarmos que, no processo de sua criação, foi fundamental a relação entre Brasil e Portugal, pois havia um envio de produtos e espécimes do Brasil para Portugal (LOPES, 2005), como uma forma do centro tomar conhecimento sobre as riquezas e características desse país periférico. Esse Museu atuou como centro irradiador e de apoio às atividades de ensino formal e, conforme Lopes (2005, p. 32), era provedor dos museus europeus, caracterizando-se como:

[...] misto de gabinete de curiosidades e novo Museu de História Natural, possuía salas de aulas, gabinetes para a História Natural dos reinos mineral, vegetal e animal, gabinetes para medalhas, marfins, panos e sedas, gabinetes para pinturas e manufaturas, gabinetes de embarcações, vestidos e armas, gabinetes para antiguidades, biblioteca e “cozinha” para as preparações.

Destacamos também a criação de outros museus que, assim como o Museu Real, apresentam caráter etnográfico: o Museu Paranaense Emílio Goeldi (1866) e o Museu Paulista (1894), conhecido como Museu do Ipiranga. Essas instituições, conforme Julião (2006), apresentavam pretensões enciclopédicas, dedicados à pesquisa em ciências naturais, por meio da coleta, estudo e exibição de coleções naturais, de paleontologia, etnografia e arqueologia. Esses museus exaltavam a nação, pois celebravam suas riquezas e a exuberância de sua fauna e flora, embora a questão da nacionalidade tenha sido melhor contemplada pelo Museu Histórico Nacional, criado em 1922, consagrado à pátria, à história e a representação da nacionalidade, objetivando educar o povo (JULIÃO, 2006). Esses museus, conforme Lopes (2005), seguiam o molde europeu de museu metropolitano e universal.

Museu Paranaense
Criados dentro de um “espírito nacional”, esses museus possuíam forte ambição pedagógica, conferindo sentimento de antiguidade à nação, atuando no processo de construção das nacionalidades (JULIÃO, 2006). O Museu Paranaense, assunto do texto de Langer e Rankel (2015), foi criado em 1876, era privado e possuía um caráter histórico e de ciências naturais, contendo produtos da flora provincial, amostras de minerais e outros objetos raros. Para Langer e Rankel (2015), a instituição ajudava a fortalecer a imagem de progresso que se desejava atribuir ao Paraná, afirmando-se como centro cultural da província. Atuou no incentivo à produção agrícola no Paraná, bem como nas políticas migratórias para o estado.

Também destacamos a atuação do Pedagogium (fundado em 1890), fruto da instituição da República Brasileira, enquanto símbolo da modernidade educacional, centrando suas funções no ensino primário, além de disseminar a criação de museus escolares (BASTOS, 2002). No Rio de Janeiro foi criado, em 1883, o primeiro museu escolar da América Latina, em decorrência da Exposição Pedagógica. Esses museus, conforme Bastos (2002), vinculam-se ao método do ensino intuitivo – lição de coisas, permitindo a visualização real e concreta daquilo que era abordado nas aulas, especialmente pensando para a capacitação de professores.

Como podemos perceber, os museus brasileiros do século XIX eram fortemente influenciados e marcados pela presença de acervos e práticas que remetiam à educação e à pesquisa científica, enquanto símbolos de civilização e desenvolvimento. O país, nesse sentido, se utilizou dessas instituições para reforçar uma imagem de nação desenvolvida e culta, seguindo o molde dos museus europeus.

REFERÊNCIAS

BASTOS, Maria Helena Câmara. Pedagogium: templo da modernidade educacional republicana brasileira (1890-1919). In: ______. Pro Patria Laboremus: Joaquim José de Menezes Vieira (1848-1897). Bragança Paulista: EDUSF, 2002. P. 251-315.

JULIÃO, Letícia. Apontamentos Sobre a História do Museu. Caderno de Diretrizes Museológicas I. Brasília: Ministério da Cultura/ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ Departamento de Museus e centros Culturais. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, Superintendência de Museus, 2006. p. 19-32.

LANGER, Johni; RANKEL, Luiz Fernando. A Criação do Museu Paranaense: ciência e cultura material no Brasil Império. Revista Museu. Disponível em: < www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=34320 >. Acesso em: 20 jun. 2015.

LOPES, Maria Margaret. Os Antecedentes, a Constituição e os Primeiros Anos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. In: ______. O Brasil Descobre a Pesquisa Científica: os museus e as Ciências Naturais no século XIX. [São Paulo?]: Ed. Hucitec, 2005. P. 25-84.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

III ENCONTRO HISTÓRIA, IMAGEM E CULTURA VISUAL: ALGUNS APONTAMENTOS

Estudar a história dos museus significa muito mais do que apenas rever – ou mesmo decorar – datas e personagens importantes em suas histórias. Para estudarmos a história dessas instituições, é necessária uma pré-disposição para refletir sobre os processos de musealização e de articulação entre o museu e o seu contexto sócio-cultural, tendo em vista que essas instituições são fortemente formadas e influenciadas por fatores externos, de ordem política, econômica e social.

Nesse sentido, entendo que foi extremamente enriquecedora a experiência dos acadêmicos da disciplina de História dos Museus e dos Processos Museológicos ao assistirem às apresentações do eixo temática Memória, Educação e Patrimônios Visuais, do III Encontro História, Imagem e Cultura Visual, pois os trabalhos desse evento proporcionaram aos estudantes contato com exemplos de aplicações de diferentes práticas em museus.

Nara Beatriz Witt
O trabalho de Nara Beatriz Witt, intitulado História da Educação e Visualidade: as Lições de coisas e o Museu de História Natural do Colégio Anchieta/Porto Alegre, RS, abriu as apresentações, traçando um panorama a respeito dos museus escolares da cidade de Porto Alegre. É interessante destacarmos, dessa apresentação, a preocupação da autora em estudar esse tipo de instituição, que infelizmente é bem pouco difundida, mesmo em colégios particulares, que dispõe de maiores recursos. Refletindo sobre História, Educação e Museologia, a autora aborda a cultura material escolar e o papel pedagógico do museu, enquanto facilitador da assimilação dos conhecimentos aprendidos pelos alunos em sala de aula.

Ana Celina Figueira da Silva
O trabalho de Ana Celina Figueira da Silva, O Museu e a Construção da Memória de Julio de Castilhos: a preocupação com a imagem, para além de nos apresentar um pouco da história desta importante instituição museológica do Rio Grande do Sul, nos faz refletir sobre a atuação dos museus (focando em seus aspectos imagéticos) enquanto consagradores de uma memória – no caso, a memória de uma personagem política. Nesse sentido, destaco o discurso construído pelo museu, fruto de uma intencionalidade governamental – ou seja, percebemos a integração do museu como mais um artifício utilizado na consagração de memórias. Assim como medalhas, bustos e monumentos cívicos e fúnebres espalhados pela cidade, também o museu desempenhou uma atividade nesse projeto de construção da imagem heróica de Julio de Castilhos.

Museu das Missões
O trabalho de Natália Thielke, intitulado Museu das Missões: narrativas visuais sobre o passado missioneiro, nos apresenta um museu pensado com o intuito de reconstruir a ambiência das reduções jesuíticas – também chamado de “simples abrigo”. A própria estrutura do museu, que tem paredes de vidro, foi projetada com o objetivo de integrá-lo ao ambiente local, especialmente com visão privilegiada para a Igreja de São Miguel. A intenção, desse modo, era projetar o visitante à época das reduções, mas esse ato me soou ambíguo, pois ao mesmo tempo em que o museu objetiva construir uma ambiência das reduções, ele silencia personagens centrais da história local: os índios, que davam a dinâmica ao lugar. Obviamente, os jesuítas eram importantes e seria um equívoco desconsiderá-los, mas silenciar a atuação dos índios é uma forma de construir um discurso hegemônico, em que apenas os poderosos aparecem como atuantes. O fato de o museu ter sido concebido em um contexto em que havia uma intenção de fortalecer a identidade brasileira com Portugal justifica esse viés do museu, mas não o torna menos injusto.

Museu Claustro de San Agustín
A comunicação de Ana Cecilia Escobar Ramirez, chamada Resultados da Investigação Curatorial "Colombia en tiempos de la Gran Guerra”, abordou a pesquisa realizada no Museu Claustro de San Agustín, da Universidade Nacional da Colômbia. O trabalho de Ramirez nos alerta para a importância da pesquisa nas instituições museológicas, através da qual é possível formar exposições tendo como referência os materiais divulgados pela grande mídia. Mais uma vez, o museu desempenha um papel importante na consolidação de uma memória, agora não apenas de uma personagem, mas de um acontecimento que provoca tensões: a guerra.

Museu de Arte de São Paulo
Priscila Leonel de Medeiros Pereira apresentou o trabalho Ir, Ver e se Apropriar, relato do projeto “40 Museus em 40 Semanas”, realizado na cidade de São Paulo e que objetivou levar pessoas para conhecer museus da metrópole ao longo de um ano. A apropriação do patrimônio e da memória é o foco da comunicação da autora, que evidenciou a importância do acesso físico e simbólico a esses espaços. Desse modo, a visitação aberta não é apenas destacada como importante para a apropriação do patrimônio, mas também para a valoração do museu enquanto instituição a serviço da população, pois o indivíduo só dará valor ao museu se o conhecer e se sentir pertencente ao seu espaço, incluído em suas atividades e representado enquanto cidadão. A mediação realizada pela instituição, nesse sentido, é a palavra-chave para a valorização dos museus.

Zita Rosane Possamai
Por fim, Zita Rosane Possamai apresentou a comunicação A Educação em Exposição: o Palácio da Educação na Exposição Universal de Paris, 1900, em que abordou as imagens do Palácio da Educação, onde foram reunidos materiais relacionados às práticas de ensino de diversos países. A Educação, mais uma vez, está no centro da questão, agora não abrangendo o caráter pedagógico dos museus, mas sim o museu construindo discursos sobre a Educação, o progresso e a modernização tecnológica. O objetivo dos materiais expostos era dar a ver o cotidiano da vida escolar. Destaco, dessa apresentação, o entusiasmo que percebemos na construção e no discurso de exposições como esta, que ressaltam determinados aspectos da vida cotidiana e, mais que isso, as mudanças pelas quais passa a sociedade, pois trata justamente de contrapor o passado e o presente da Educação, verificando as transformações pelas quais passou a Educação.


A diversidade de perspectivas e práticas museológicas é enriquecida quando percebemos que cada trabalho trouxe um museu diferente de uma localidade distinta, pois houve estudos sobre museus de Porto Alegre (Museu Júlio de Castilhos e Museu do Colégio Anchieta), do Rio Grande do Sul (Museu das Missões), de São Paulo (museus visitados no projeto 40 Museus em 40 Semanas) e mesmo internacionais (o caso do Museu Claustro de San Agustín e da Exposição Universal de Paris). Desse modo, compreendo que foi de grande valia essa experiência, pois facilitou a assimilação dos estudantes da disciplina no que tange à história dos museus, ao apresentar a multiplicidade de atividades e discursos realizados por essas instituições, tanto antigamente como na contemporaneidade.

sábado, 28 de março de 2015

COLECIONISMO E MUSEUS


Os museus são responsáveis por trabalhar a memória da sociedade e, para tanto, eles estão calcados nas atividades de pesquisa, conservação e exposição dos bens culturais. Os bens culturais de que são detentores compõem a coleção do museu e são agrupados de acordo com determinados critérios. O museu é composto por essas coleções, sendo um conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantido temporariamente ou definitivamente fora do circuito comercial e recebendo proteção especial em local fechado e preparado para isso, além de ser exposto ao olhar do público (POMIAN, 1984). Apesar delas comporem o museu, ele não se resume a coleções. Ou seja: ele é muito mais do que um agrupamento de obras, pois possui um papel social que está para além de seu caráter detentor de bens culturais.

Os museus são utilizados no discurso de identidade nacional.
A configuração dos museus como hoje os conhecemos remonta ao século XVIII, com o surgimento dos estados nacionais europeus, momento em que essas instituições se consagraram como espaços de preservação do “patrimônio” e da “herança” da nação (ALMEIDA, 2001). Nesse sentido, os museus foram fortemente utilizados para enraizar discursos sobre a identidade nacional – mesmo quando inventada, o que percebemos que permanece até hoje, enfatizando os museus como espaços de tensão entre diferentes atores e grupos sociais.

Entretanto, a consolidação dos estados nacionais não foi o único cenário de surgimento desses museus, pois, como elucida Almeida (2001, p. 126-127), “[...] a criação dos museus contemporâneos é também tributária de um outro fenômeno, o colecionismo [...] como prática social já havia instituído princípios que foram amplamente incorporados pelos ‘novos’ museus.” Desse modo, a prática de colecionar foi fundamental para a implementação dos museus como hoje conhecemos.

Não há, de acordo com Pomian (1984), um número mínimo determinado de objetos para se compor uma coleção. Segundo o autor, a escolha desses itens depende de diversos fatores, tais como o local em que são acumulados, o estado da sociedade, suas técnicas e modos de vida, capacidade de produção e acumulo de excedentes, importância da comunicação atribuída ao visível e ao invisível através dos objetos, dentre outros.

Os objetos podem possuir um valor de utilidade, de significado ou ambos. Uma das características das obras de coleções é que não possuem mais valor de uso, mas sim valor de significado. A esse respeito, Pomian (1984) destaca que esses valores são atribuídos tendo em conta a perspectiva de um observador, pois são relações que, através dos objetos, os indivíduos ou grupos mantém com seus ambientes visíveis ou invisíveis. Para Almeida (2001), tanto os objetos do museu como os de coleções particulares são “reconstruídos” quando passam pelo olhar de seus visitantes.

É necessário uma análise profunda antes
de negociar obras de museus
Um fator determinante na diferenciação entre coleções e museus é a questão do público e do privado. O museu tem a responsabilidade de agrupar essas obras porque há uma pressão sobre o Estado para que permita o acesso a esses bens por parte dos indivíduos que não podem comprá-los. Também cabe destacarmos que o museu, embora seja composto por coleções e tenha se desenvolvido através delas, não pertence ao âmbito comercial do mercado de obras de arte. Ao contrário de obras que compõe coleções particulares, que podem ser vendidas e negociadas a bel prazer do proprietário, as obras de museus públicos não podem ser vendidas – ou pelo menos, não sem se analisar com muito cuidado as perdas e ganhos da negociação, uma vez que elas pertencem à população como um todo. Se elas remetem à história e à memória da população, o seu valor simbólico suplanta definitivamente o valor comercial. Nas palavras de Pomian (1984, p. 84): “Exatamente porque o museu é um depósito de tudo aquilo que de perto ou de longe está ligado à história nacional, os objetos que aí se encontram devem ser acessíveis a todos; e pela mesma razão, devem ser preservados.”

Nem toda coleção representa a
sociedade civil
Por fim, ressaltamos que, para compor uma coleção particular, não há pré-requisitos que as obras devem cumprir, pois o proprietário pode querê-las por serem raras, belas ou mesmo por especulação. Muito ao contrário é a peça que compõe uma coleção de um museu público, pois esta precisa ser criteriosamente analisada no que tange à relevância dela enquanto representante da sociedade civil. Nesse sentido, destacamos a importância da pesquisa no museu, pois é através do estudo do objeto que nós o contextualizamos, ressignificando-o e ressemantizando-o perante a população.



REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de. O Colecionismo Ilustrado na Gênese dos Museus Contemporâneos. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 33, 2001.


POMIAN, Krzysztof.  Colecção. In: Enciclopédia Einaudi. v. 1 (Memória-História). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 51-86.

sexta-feira, 27 de março de 2015

MUSEU JÚLIO DE CASTILHOS: MUSEU MUTANTE, DISCURSO ATUANTE


A última postagem que fiz neste blog foi referente ao Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS, que é um excelente exemplo de museu interativo. Agora, reabro as atividades postando sobre uma instituição bastante diferente, que é o Museu Júlio de Castilhos (MJC), típico exemplo de museu tradicional (ou ortodoxo). Entretanto, iremos perceber através dos apontamentos que farei, que o museu não é tão estático como poderia parecer, pois passou por grandes mudanças ao longo de sua história e já foi muito utilizado para reforçar vieses ideológicos.

Júlio de Castilhos
O Museu Júlio de Castilhos foi o primeiro criado no RS, em 1903, em homenagem ao patrono morto no mesmo ano. O Museu, entre 1903 e 1954, passou por uma redefinição tipológica, deixando de lado a perspectiva de se assemelhar aos museus etnográficos europeus e brasileiros e passando a um viés regionalista de reconstrução do passado local. Nedel (2005) discute o uso da memória na consagração do positivismo no estado, através de um discurso histórico que legitimava as elites políticas estaduais. Os princípios expressos na atuação do Museu ao longo de seus primeiros 50 anos salientam o envolvimento das instâncias de saber no domínio das práticas de representação identitária. Nesse sentido, alguns grupos – os homens cultos – eram tidos como guardiões da memória coletiva. É nesse contexto que surge a concepção de regionalismo, ligado à preservação da memória da região. Entretanto, conforme Nedel (2005, p. 90):

Sem entrar no mérito das diferenças de ordem geográfica, político-administrativa, etc., parece certo reter que a categoria impõe um raciocínio analógico, associado à relação parte-todo, e que sua trajetória semântica encontra-se historicamente vinculada ao processo de unificação nacional – sendo esta última assegurada, entre outras coisas, pela combinação de partes (“regiões” e grupos) que integram a unidade política em questão.


O regionalismo (a parte) parece surgir na ideia do distanciamento para com o Estado nacional (o todo), tomando a parte como superiora ao todo. Daí surge também a ideia de que a parte deve deixar de compor o todo, que atrasa o seu desenvolvimento. É o que conhecemos como o movimento separatista, que recorrentemente é defendido por alguns setores da sociedade. Desse modo, o discurso regionalista é utilizado em conflitos internos, na busca pelo centro do poder local; e em conflitos externos, pois tem um caráter de rebelião – em casos mais extremos, pode dar origem a demonstrações de preconceito e desprezo por pessoas de outra região – a xenofobia. O discurso regionalista, conforme Nedel (2005), aposta na complementaridade, pois na tensão entre o polo e a periferia reside o seu trunfo político.

A região, nesse sentido, possui uma eficácia simbólica que deriva de práticas e imagens mentais que são representadas através de determinados atores e instâncias de poder. Tudo isso é fortalecido pela afetividade decorrente da divisão do espaço, por meio da interiorização de alguns atributos que sintetizam o vínculo dos habitantes com o território.

A história do MJC começa ligada ao espólio deixado por uma das Exposições Universais, iniciadas em 1851. Julio de Castilhos, presidente do estado, teve a ideia de criar um museu com a reunião de 360 exemplares de minérios do RS, exibidos na Exposição Agropecuária de 1901. Ele foi criado para ser o “Museu do Estado” e integrado ao movimento de criação dos museus científicos internacionais. Possui um caráter “mutante” devido principalmente a dois marcos de sua trajetória: a fundação, em 1903, com um viés enciclopédico, dedicado à “História Natural”; e o momento de redefinição tipológica, em 1954, quando tornou-se um museu histórico, dando prioridade ao folclore e ao estudo das tradições “pátrias” e rio-grandenses.

Em 1905, o Museu foi transferido para o sobrado em que Julio de Castilhos viveu com a família. Dois anos depois, teve seu regulamento aprovado e recebeu o nome do patriarca. O museu atuava para além da heroificação dos vultos republicanos, sendo constituído por quatro seções: zoologia e botânica; mineralogia, geologia e paleontologia; antropologia e etnografia; e ciências, artes e documentos históricos. O museu, durante algum tempo, não contemplava a função museográfica, permanecendo a maior parte do tempo fechado ao público, recebendo pesquisadores estrangeiros e fornecendo pareceres ténicos. Desde o período de sua criação até a década de 1920, o MJC era predominantemente caracterizado como um museu de história natural. Os povos indígenas também não eram devidamente representados no museu – excetuando-se questões relacionadas à sua biologia e linguística.

Lentamente, o museu foi deixando de lado sua perspectiva naturalista, cedendo lugar a um viés histórico. Foi em 1925 que o Museu deu uma guinada nesse sentido, especialmente devido à incorporação da seção histórica do Arquivo Público e a parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS). Houve, então, uma integração entre essas três instituições, procurando adequar as leituras do passado regional às relações políticas do estado.

Em 1925, após mudanças administrativas, o museu passou a possuir duas seções: História Nacional (liderada pelo arquivo) e História Natural (com a classificação e análise das coleções paleontológica, etnográfica e botânica). Em 1938, é vinculado à Secretaria de Educação e Cultura, tendo finalmente seu regulamento adequado às funções que passara a desempenhar em 1925. Esse novo regimento fixa a função museográfica como atribuição do museu, que deveria catalogar, colecionar e expor documentos referentes à História e Geografia, relíquias históricas, artísticas e arqueológicas do Brasil, especialmente do RS. Durante o Estado Novo, é nomeado para a direção da instituição o médico Emílio Kemp, que voltou a política de atuação do museu para o público, ao contrário do que vinha ocorrendo, quando o foco do trabalho era a pesquisa, transcrição e catalogação de documentos.


Museu Júlio de Castilhos
Na década de 1950, assume Dante de Laytano, voltando o museu a ser palco de intensos debates intelectuais e participando da formação de outras instituições do gênero. Também passou a treinar profissionais que não contavam com formação específica, integrados a pesquisadores que compunham uma campanha nacional a favor da elaboração de uma identidade científica para os estudos folclóricos, cuja representação no estado foi abrigada no museu. Conforme Nedel (2006), em 1953 o museu comemorou seu cinquentenário com um acervo bem mais numeroso do que as dez mil peças abrigadas pela instituição atualmente. Para a autora, era até mesmo difícil identificar que tipo de museu era aquele, pois “Com parcas adaptações funcionais, o ambiente antes doméstico do sobrado em que vivera o patriarca do partido republicano rio-grandense exibia tudo o que guardava, e guardava o quanto recebia.” (NEDEL, 2006, p. 12). A fisionomia atual do museu é bastante distinta, uma vez que o prédio anexo foi adquirido em 1980 e reformado em 1996 (NEDEL, 2006), com reserva técnica climatizada, sala de restauração, auditório e planejado sistema de iluminação.

O MJC, como percebemos, passou por diversas mudanças ao longo do tempo, fortalecendo seu caráter “mutante”. Entretanto, percebemos que, independente da caracterização do museu (ora focado mais em um tipo de acervo, depois em outro), ele sempre funciona como um espaço de conflito, pois é utilizado no embate político e ideológico, reforçando as tensões entre o estado e a nação. Se o patrimônio é um campo de disputa, não poderia o museu, responsável por esses bens, não o ser.

REFERÊNCIAS

NEDEL, Letícia Borges. Breviário de um Museu Mutante. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 11, n. 23, p. 87-112, jan./jun. 2005.


NEDEL, Letícia Borges. Da Coleção Impossível ao Espólio Indesejado: memórias ocultas do Museu Julio de Castilhos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 38, p. 11-31, jul./dez. 2006.