O patrimônio cultural é fundamental em nosso
processo de construção identitária, pois são os signos e símbolos
representantes de nossa cultura que ajudam a fortalecer nosso sentimento de
pertencimento a um determinado grupo social. Esse processo se caracteriza
através de nossas relações sociais, bem como de nossa interação com o ambiente
em que vivemos. No entanto, há um conjunto de signos e símbolos rígidos que
consideramos como patrimônio cultural, pois são difundidos pelo Estado, influenciando
nessa construção identitária.
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Precisamos de diferenças que nos singularizem |
Ao pensarmos no conceito de nação, devemos
considerar que “[...] mesmo existindo suportes concretos e contínuos do que se
concebe como nação (o território, a população e seus costumes etc.), em boa
parte o que se considera como tal é uma construção
imaginária.” (GARCÍA CANCLINI, 1994, p. 98) Nessa concepção, devemos ter em mente, ao pensarmos
sobre as características da nossa cultura, que construímos nossa identidade
cultural no dia a dia. Assim, cabe a colocação de Possamai (2013), ao nos
lembrar o fato de que o patrimônio não é um conceito dado, pois se concretiza
através da construção social feita por determinados sujeitos em determinadas
situações, sendo também apropriado por outros sujeitos de maneiras diferentes
das originais. Para a autora, a construção identitária de cada grupo social é
calcada no apontamento de diferenças, ou seja, um grupo se caracteriza pelo
diferencial que tem em comparação com outros grupos, de outros locais.
Fazemos parte de culturas híbridas |
García Canclini (1994) discute as implicações que
fatores como o desenvolvimento urbano, a mercantilização, o turismo e as
indústrias culturais geram sobre a noção de patrimônio histórico, uma vez que
temos cada vez mais contato com diferentes pessoas, de diferentes lugares e
culturas, gerando um hibridismo cultural, pois nossa cultura não é apenas o
resultado de nosso processo histórico, ao passo em que se transforma a cada
contato que temos com outras culturas.
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Néstor García Canclini |
Porém, o que percebemos é que temos a tendência a,
ao pensarmos em patrimônio cultural, lembrarmos apenas daquilo que configura
nossa cultura mais tradicional, ou seja, os costumes, roupas e modos de vida
que fazem parte do nosso desenvolvimento histórico, geralmente remetendo ao que
é antigo, considerado tradicional. Desconsideramos, nesse processo, o fato de
que interagimos a todo o momento com um ambiente transformado, que guarda os
resquícios da história, mas também se recria através do contato com diferentes
culturas. Conforme García Canclini (1997, p. 160), “Esse conjunto de bens e
praticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é apreciado
como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não
cabe discuti-lo.” É como se a maioria de nós compreendêssemos o patrimônio
cultural apenas como algo “herdado” do passado, de nossos antecessores, pois
insistimos em posicioná-lo alheio à modernidade.
Talvez o principal motivo para essa percepção que
fazemos de nossa cultura seja a atuação do Estado, que busca, através da
disseminação de ideias e imaginários, reforçar nosso amor e fidelidade à
pátria. Com esse intuito, muitas vezes o Estado defende e vangloria os
movimentos tradicionalistas. Conforme García Canclini (1997), para o
tradicionalismo, pior do que não compreender o patrimônio cultural é desertar
dele, considerá-lo como não representante de nossa cultura, questionando a
veracidade das representações por ele difundidas.
Zita Possamai |
Possamai (2013) utiliza o termo “kit identidade” para se referir à
construção da identidade nacional feita pelo Estado, que conta com
características como a bandeira, o hino, a língua, o calendário cívico de datas
comemorativas, entre outros. No contexto da cultura gaúcha, o “kit identidade” é configurado por
objetos e costumes peculiares dos gaúchos – ou que, pelo menos, a maioria
entende que sejam. Conforme Farinatti (2013):
Não há dúvida que há vários modos
de sentir-se gaúcho. Mas é fato que a maioria deles passa pela identificação
com o gaúcho como figura mítica, primeva, fundamental. Ele teria sido o “tipo
social” por excelência da região da Campanha, mas também existente em outras
áreas. Os gaúchos teriam sido homens destros nas lides campeiras, que viveriam
entre o trabalho como peões nas estâncias e a luta nas inúmeras guerras de
antigamente [...]
Nesse contexto, o autor ainda afirma que essa
representação que se faz da figura do gaúcho serve para estabelecer uma
diferença do restante do Brasil. Essa ideia fortalece a concepção de Possamai (2013)
anteriormente apontada, na qual os grupos sociais constroem seus patrimônios
culturais levando em conta o que os diferencia dos demais povos. Outro aspecto
apontado pelo autor e que sintoniza com as ponderações de Canclini (1994) é que
“Um lado bastante interessante do regionalismo é a busca de levar adiante
aspectos de uma cultura local e não permitir que ela seja completamente
submergida na padronização proposta pela globalização econômica e cultural.”
(FARINATTI, 2013)
Todo gaúcho anda a cavalo? |
As colocações acima expostas demonstram o papel do
Estado na construção de ideias e imaginários acerca do que entendemos como sendo
nosso patrimônio cultural. Como podemos perceber, ao pensarmos em nosso
patrimônio cultural, geralmente desconsideramos as interações com outras
culturas e lembrarmos apenas das nossas características mais tradicionais. Podemos
arriscar o palpite de que um dos principais motivos para esse fenômeno é a
busca pelo que nos diferencia, pelo que nos torna únicos e originais.
Em um mundo globalizado, é comum – e esperado – que
tenhamos a necessidade de, em meio a disseminação de tantos modelos banais de
cultura – geralmente advindas dos norte-americanos -, identificarmos aquilo que
nos singulariza, as peculiaridades que, ao longo de nossa história, nos
diferenciaram dos demais povos. Nessa concepção, cabe discutirmos o que
realmente faz parte da nossa cultura, de modo a não aceitarmos conceitos
prontos sobre quais bens culturais nos representam. Cabe ressaltarmos que o
patrimônio cultural deveria inspirar reflexão, porém muitas vezes gera acomodação
e consenso coletivo.
REFERÊNCIAS
FARINATTI, Luís Augusto.
Os Gaúchos e os Outros. Diário Liberdade.
set. 2011. Disponível em: < http://www.diarioliberdade.org/brasil/batalha-de-ideias/19743-luis-augusto-farinatti-os-gauchos-e-os-outros.html
>. Acesso em: 22 set. 2013.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. O
Porvir do Passado. In: ______. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e
sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997. P. 159-204.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. O
Patrimônio Cultural e a Construção Imaginária do Nacional. Revista do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, p. 95-115,
1994.
POSSAMAI, Zita Rosane. Patrimônio
e Identidade: qual o lugar da História? In: GASPAROTTO, Alessandra; FRAGA,
Hilda Jaqueline de; BERGAMASCHI, Maria Aparecida. (Org.). Ensino de História no Cone Sul: patrimônio cultural, territórios e
fronteiras. Porto Alegre: Evangraf/UNIPAMPA, 2013. P. 87-98.
Adorei tuas considerações! Muito pertinentes!
ResponderExcluirTe visitei hj ..pesquisando Canclini ... grato encontro!
ResponderExcluirTe visitei hj ..pesquisando Canclini ... grato encontro!
ResponderExcluirTe visitei hj ..pesquisando Canclini ... grato encontro!
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