sexta-feira, 1 de novembro de 2013

HARMONIA, SÓ QUE NÃO...


Multiculturalismo não significa harmonia
Em pleno século XXI, já sabemos que não somos fruto de uma única etnia, pois embora tenhamos maior afinidade ou semelhança física com uma etnia em especial – aquela a qual muitas vezes nos dizemos descendentes –, somos fruto de uma miscigenação que reverberou na construção de uma sociedade multicultural, influenciada pelas culturas dos mais diversos povos. No entanto, multiculturalismo não significa harmonia, uma vez que percebemos que o campo do patrimônio cultural é um espaço desarmônico, pois mesmo que vivamos em uma sociedade multicultural, as interações entre essas diversas culturas não são tão amigáveis. Este texto discute alguns acontecimentos apontados no documentário Harmonia, de Jaime Lerner, o qual aborda a luta entre tradicionalismo gaúcho e carnaval na construção de um Sambódromo no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, em Porto Alegre.

A partir da discussão sobre a construção de um sambódromo no parque da Harmonia, somos levados pelo filme a pensar nos embates étnicos que marcam a cultura e a história do povo gaúcho. O longa apresenta o projeto de construção do sambódromo de Porto Alegre na área do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, conhecido como Parque da Harmonia, localizado próximo ao Centro da cidade. O problema é que os tradicionalistas, ferrenhos defensores da cultura gaúcha, se opuseram a essa ideia, pois alegavam que aquele espaço era de celebração das tradições gaúchas, âmbito em que o carnaval não se enquadra.

Tradicionalismo Gaúcho
Para melhor discutirmos sobre as tensões percebidas no longa, cabe alguns apontamentos acerca das duas celebrações, o tradicionalismo e o carnaval. O movimento tradicionalista, como mencionado no documentário, tem suas origens na década de 1940 e surgiu no âmbito acadêmico, sendo seus precursores estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, à época uma referência para a educação gaúcha. Surgiu como uma forma de valorização da cultura gaúcha, relacionada à vida e aos hábitos do homem do campo, até então marginalizados. Embora erudito, o tradicionalismo valoriza a vida campeira, que remete à ideia do puro. O movimento, através de sua indumentária, parece defender uma essência pura, recatada, buscando representar a “verdadeira” origem simples e guerreira do homem do campo. Uma característica fortemente difundida é o sentimento de orgulho em ser gaúcho.

Carnaval
O carnaval, por sua vez, é essencialmente composto por elementos populares, evidenciando-se a forte presença de traços da cultura africana, identificados em suas roupas, letras de músicas e mesmo na grande quantidade de negros adeptos a esta festa. Ao contrário do movimento tradicionalista, o carnaval compõe-se enquanto uma explosão de cores, sabores e sensações, sendo sua essência impregnada de elementos que remetem à luxúria e aos prazeres mundanos. Em sua indumentária, predominam aspectos pagãos, evidenciados através de nudez e sensualidade, outra característica bastante contrária ao ideal do homem do campo, simples e recatado.

Um motivo que pode ter sido fundamental para a resistência dos tradicionalistas à construção do sambódromo é o imaginário sobre a etnia, o local e a nação, que, na construção de uma identidade, reforça as influências culturais de uma etnia e desconsidera os vestígios de outras. No caso analisado neste texto, do confronto entre o tradicionalismo e o carnaval, fica evidente o papel dessas festividades e celebrações como promotoras da construção imaginária ufanista do Rio Grande do Sul. Como apontado no filme, a cultura gaúcha apresenta mais características – ou pelo menos dá mais valor – dos povos indígenas do que vestígios dos povos africanos, sendo a provável explicação para esse fenômeno a semelhança entre a figura do gaúcho e a do índio.

Carnaval - Sensualidade e Exuberância
Tradicionalismo - Recatamento
e Simplicidade
Podemos acreditar que outro motivo para que os tradicionalistas tenham barrado a construção do sambódromo seja justamente a grande disparidade entre esses dois movimentos, uma vez que a sensualidade carnavalesca é agressiva aos olhos do tradicionalismo gaúcho. Como poderiam os tradicionalistas fortalecer sua origem pura, simples e recatada, se dividissem espaço com tanta gente seminua e exuberante desfilando? Nesse sentido, aqueles que não possuem uma semelhança física com o ideal cultural prevalecente devem ser esquecidos.

Outro motivo – e talvez o principal – para os tradicionalistas se oporem à construção do sambódromo no Parque da Harmonia é a sua localização. O parque se localiza em uma zona central da cidade, próximo a importantes vias de acesso e ao poder político do estado do Rio Grande do Sul. O centro é símbolo de poder, espaço privilegiado da cidade. Como sugerido por um dos tradicionalistas entrevistados no filme, o sambódromo deveria ser instalado na Restinga, bairro periférico da cidade. Anos após a filmagem do longa, já sabemos qual foi o resultado desse embate: o sambódromo não foi construído na Restinga, mas no Porto Seco, do outro lado da cidade, bem longe do Centro, do Parque da Harmonia e do poder político do estado. Assim como dois corpos não ocupam o mesmo espaço, também as etnias não apresentam um convívio harmônico ao serem misturadas.

Localização do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho

O que percebemos é que, por mais que pertençamos a uma cultura híbrida, as etnias que a compõe não convivem em completa harmonia, pois o fortalecimento do ideal de uma cultura pode significar o enfraquecimento de outra. Nesse sentido, observamos a luta por espaços centrais dentro da cidade, sendo que a cultura perdedora, aquela que não consegue se consolidar com tanta força, acaba sendo jogada para a periferia, impedida de ocupar os mesmos espaços da cultura dominante. A questão é que o apelido Harmonia soa quase ironicamente, pois esse espaço já foi palco de muitas tensões e desarmonias entre as etnias que compõe a cultura gaúcha.
           
REFERENCIAS


HARMONIA. Diretor: Jaime Lerner. [Porto Alegre?], [2000?], 1 VHS (90 min), son., color.

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