Multiculturalismo não significa harmonia |
Em pleno século
XXI, já sabemos que não somos fruto de uma única etnia, pois embora tenhamos
maior afinidade ou semelhança física com uma etnia em especial – aquela a qual
muitas vezes nos dizemos descendentes –, somos fruto de uma miscigenação que
reverberou na construção de uma sociedade multicultural, influenciada pelas
culturas dos mais diversos povos. No entanto, multiculturalismo não significa
harmonia, uma vez que percebemos que o campo do patrimônio cultural é um espaço
desarmônico, pois mesmo que vivamos em uma sociedade multicultural, as
interações entre essas diversas culturas não são tão amigáveis. Este texto
discute alguns acontecimentos apontados no documentário Harmonia, de Jaime Lerner, o qual aborda a luta entre tradicionalismo
gaúcho e carnaval na construção de um Sambódromo no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, em Porto Alegre.
A partir da
discussão sobre a construção de um sambódromo no parque da Harmonia, somos
levados pelo filme a pensar nos embates étnicos que marcam a cultura e a
história do povo gaúcho. O longa apresenta o projeto de construção do
sambódromo de Porto Alegre na área do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, conhecido como Parque da
Harmonia, localizado próximo ao Centro da cidade. O problema é que os
tradicionalistas, ferrenhos defensores da cultura gaúcha, se opuseram a essa
ideia, pois alegavam que aquele espaço era de celebração das tradições gaúchas,
âmbito em que o carnaval não se enquadra.
Tradicionalismo Gaúcho |
Para melhor
discutirmos sobre as tensões percebidas no longa, cabe alguns apontamentos
acerca das duas celebrações, o tradicionalismo e o carnaval. O movimento
tradicionalista, como mencionado no documentário, tem suas origens na década de
1940 e surgiu no âmbito acadêmico, sendo seus precursores estudantes do Colégio
Júlio de Castilhos, à época uma referência para a educação gaúcha. Surgiu como
uma forma de valorização da cultura gaúcha, relacionada à vida e aos hábitos do
homem do campo, até então marginalizados. Embora erudito, o tradicionalismo
valoriza a vida campeira, que remete à ideia do puro. O movimento, através de
sua indumentária, parece defender uma essência pura, recatada, buscando
representar a “verdadeira” origem simples e guerreira do homem do campo. Uma
característica fortemente difundida é o sentimento de orgulho em ser gaúcho.
Carnaval |
O carnaval, por
sua vez, é essencialmente composto por elementos populares, evidenciando-se a
forte presença de traços da cultura africana, identificados em suas roupas,
letras de músicas e mesmo na grande quantidade de negros adeptos a esta festa.
Ao contrário do movimento tradicionalista, o carnaval compõe-se enquanto uma
explosão de cores, sabores e sensações, sendo sua essência impregnada de
elementos que remetem à luxúria e aos prazeres mundanos. Em sua indumentária,
predominam aspectos pagãos, evidenciados através de nudez e sensualidade, outra
característica bastante contrária ao ideal do homem do campo, simples e
recatado.
Um motivo que
pode ter sido fundamental para a resistência dos tradicionalistas à construção
do sambódromo é o imaginário sobre a etnia, o local e a nação, que, na
construção de uma identidade, reforça as influências culturais de uma etnia e
desconsidera os vestígios de outras. No caso analisado neste texto, do
confronto entre o tradicionalismo e o carnaval, fica evidente o papel dessas
festividades e celebrações como promotoras da construção imaginária ufanista do
Rio Grande do Sul. Como apontado no filme, a cultura gaúcha apresenta mais
características – ou pelo menos dá mais valor – dos povos indígenas do que
vestígios dos povos africanos, sendo a provável explicação para esse fenômeno a
semelhança entre a figura do gaúcho e a do índio.
Carnaval - Sensualidade e Exuberância |
Tradicionalismo - Recatamento e Simplicidade |
Podemos
acreditar que outro motivo para que os tradicionalistas tenham barrado a
construção do sambódromo seja justamente a grande disparidade entre esses dois
movimentos, uma vez que a sensualidade carnavalesca é agressiva aos olhos do
tradicionalismo gaúcho. Como poderiam os tradicionalistas fortalecer sua origem
pura, simples e recatada, se dividissem espaço com tanta gente seminua e
exuberante desfilando? Nesse sentido, aqueles que não possuem uma semelhança
física com o ideal cultural prevalecente devem ser esquecidos.
Outro motivo – e
talvez o principal – para os tradicionalistas se oporem à construção do
sambódromo no Parque da Harmonia é a sua localização. O parque se localiza em
uma zona central da cidade, próximo a importantes vias de acesso e ao poder
político do estado do Rio Grande do Sul. O centro é símbolo de poder, espaço
privilegiado da cidade. Como sugerido por um dos tradicionalistas entrevistados
no filme, o sambódromo deveria ser instalado na Restinga, bairro periférico da
cidade. Anos após a filmagem do longa, já sabemos qual foi o resultado desse
embate: o sambódromo não foi construído na Restinga, mas no Porto Seco, do
outro lado da cidade, bem longe do Centro, do Parque da Harmonia e do poder
político do estado. Assim como dois corpos não ocupam o mesmo espaço, também as
etnias não apresentam um convívio harmônico ao serem misturadas.
Localização do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho |
O que percebemos
é que, por mais que pertençamos a uma cultura híbrida, as etnias que a compõe
não convivem em completa harmonia, pois o fortalecimento do ideal de uma
cultura pode significar o enfraquecimento de outra. Nesse sentido, observamos a
luta por espaços centrais dentro da cidade, sendo que a cultura perdedora, aquela
que não consegue se consolidar com tanta força, acaba sendo jogada para a
periferia, impedida de ocupar os mesmos espaços da cultura dominante. A questão
é que o apelido Harmonia soa quase ironicamente, pois esse espaço já foi palco
de muitas tensões e desarmonias entre as etnias que compõe a cultura gaúcha.
REFERENCIAS
HARMONIA. Diretor: Jaime Lerner. [Porto Alegre?], [2000?], 1 VHS (90 min),
son., color.
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